Ouvir o inaudível é imprescindível - A questão dos moradores de rua (de BH)
Delze Laureano[1], Gilvander Moreira[2] e Maria do Rosário Carneiro[3]
No dia 15 de maio de 2011, oito moradores de rua foram envenenados, em uma praça da região da Pampulha, em Belo Horizonte, MG. Enquanto dormiam, foi deixada ao lado deles uma garrafa de cachaça com chumbinho, veneno para matar rato, adicionado. Dia 17/05/, o Jornal Estado de Minas fez reportagem de Capa sobre “os moradores de rua” de Belo Horizonte, MG. Ouviu a prefeitura, comerciantes, sociedade incomodada pelo povo da rua e, perifericamente, ouviu dois peregrinos em situação de rua membros do povo da rua. Todavia, faltou ouvir com profundidade o povo da rua, vez que não ouviu os integrantes da Pastoral de Rua ou do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH -, que se localiza em Belo Horizonte, MG, na Rua Paracatu, 969, Santo Agostinho, tel. 031 3250 6360, e-mail: centronddh@gmail.com.
Todas essas questões são bastante complexas e somente após ouvir muito e sentir muito o que pessoas que fazem da rua o seu lar e o seu modo de vida têm a nos ensinar é que podemos compreender o que está por trás de tudo isso.
Cotidianamente o povo da rua está sendo crucificado. Assassinatos, desaparecimentos, torturas, agressões, roubo de seus poucos pertences, injúria, discriminação. Cada vez mais estão sendo encurralados. Não podem mais ficar na rua, pois “a rua é dos carros”, dizem uns. Estima-se que haja em Belo Horizonte mais de 2 mil pessoas sobrevivendo nas ruas. Não dá mais para taparmos os ouvidos diante dos clamores desse povo. Feliz de um povo que ouve os gritos do povo da rua, composto por pessoas que não são só um poço de miséria, mas são, acima de tudo, um poço de sabedoria, de humanidade e de dignidade humana que deve ser respeitada.
Um amigo me confidenciou, em São Paulo: “Outro dia eu estava parado no semáforo. Chegou um peregrino – povo da rua, injustamente chamado de mendigo - para pedir dinheiro. Eu disse para ele todo cheio de moral: “- Se você não fosse beber pinga, eu te daria dinheiro.” O peregrino, sorrindo e de braços abertos, me disse: “- Você disse que não me dá dinheiro, porque sou um vagabundo cachaceiro. Se você viesse dormir comigo umas duas noites aqui na calçada, neste frio lascado, você veria que a pinga é o meu cobertor. Bebo para esquentar meu corpo. Senão não agüento o frio e morro, como muitos outros colegas meus já morreram. Mas como você dorme no seu quarto quentinho, com ar condicionado, com 2 ou 3 cobertores, é muito fácil para você me chamar de cachaceiro. Bem dizia meu amigo: “Vemos o mundo a partir de onde estão os nossos pés.” Os seus pés estão em um bom apartamento e de lá você contempla o mundo.”
As políticas públicas para a População em Situação de Rua ainda estão muito aquém do necessário. Em Belo Horizonte, por exemplo, os albergues estão superlotados. Foi aprovada no Orçamento Participativo a construção de mais dois albergues, mas isso não saiu do papel ainda. Essa é uma questão social que diz respeito a todos nós, sobretudo ao poder público que tem, muitas vezes, considerado essas pessoas como “obstrução do espaço público, da via pública” e para desobstruir, manda a guarda municipal, os fiscais e a polícia militar limpar a área, “ir circulando”.
Para a População em Situação de Rua, em Belo Horizonte, tem sido aplicada a Lei municipal “Código de Posturas” do Município, sobretudo a parte que se refere às penalidades previstas neste código. A Municipalidade parece não saber que existe um Decreto Federal que regulamenta as Políticas Públicas para estes atores e, além disso, estão sendo “rasgados” os tratados internacionais de Direitos Humanos e os princípios basilares do nosso ordenamento jurídico como a defesa da vida.
O jornalista Pedro Rocha encontrou o Sr. Luiz Vida, que aos 50 anos, sobrevivendo na rua, rejeita o rótulo de morador de rua. Diz ser um peregrino. “O termo ‘morador de rua’ não condiz com a verdade”, diz. “As ruas são ocupadas pelos carros, não há espaço para outros”, reclama. Sr. Luiz abandonou o álcool, a maconha, a cocaína e o crack. Eloquente, expressa-se muito bem. Trabalha todos os dias na reciclagem de materiais, que são doados. “Uma boneca jogada fora pode ganhar vida e uma criança vai se realizar com ela”, conta o andarilho. “Somos como os extraterrestres. Viemos para invadir um terreno ocupado”, diz Luiz, que sabe o incômodo que representa para o “resto da população”. Luiz diz rejeitar a mendicância, em troca de um modo de vida mais “espiritual”. Questionado sobre como consegue comida para sobreviver, aponta para os pombos que sobrevoam a Praça da Assembleia Legislativa de Minas e faz referência a uma passagem bíblica: “Eles não plantam nem colhem e todos os dias comem para sobreviver. Eu sou muito mais importante. É claro que Deus também iria me abençoar.” Luiz se compra a uma tartaruga, carregando seu casco para onde vai. A “casa” se restringe a duas malas, onde guarda os utensílios da cozinha e do quarto. A sala de estar é o banco de praça e as honras da casa são feitas por ele mesmo, disposto a conversar com quem se aproxima. “Renunciamos a uma vida para nos adaptar a outra. Cansei da vida que eu tinha. Tudo que é repetitivo é enjoativo”, resume.
As populações de classe média e alta vivem “protegidas” dentro de muros, pela cidade anda nos seus automóveis. Muitos vêem o povo da rua à distância, passam rápido por eles quando, raramente, cruzam a pé a cidade. Muitos os rotulam como “mendigos”, “cachaceiros”... A “sociedade” sente-se ameaçada e cobra à prefeitura que “limpe a cidade”. Muitos não sabem que nos bancos das praças, nas calçadas, nas marquises está o Sr. José, o Sr. Pedro, a dona Thereza, a Maria... Que estas pessoas têm uma história de vida bonita para contar. Que são seres humanos e que têm todos os direitos garantidos pela Constituição e consagrados na Bíblia. Que merecem respeito e querem simplesmente ser tratados com humanidade. Desça do automóvel, ande pelas ruas, escute o povo de rua e ouça o inaudível. Isso é imprescindível e nos humaniza. Devemos abominar todo tipo de violência contra a vida, principalmente contra os nossos irmãos mais vulneráveis que só dispõem dos espaços públicos urbanos para a sua proteção.
[1] Advogada, doutoranda em Direito Público internacional, professora de Direito Agrário e procuradora do município de Belo Horizonte, MG; e-mail: delzesantos@hotmail.com
[2] Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor de Teologia Bíblica do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte, MG; assessor da CPT, do CEBI, das CEBs e do SAB; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br - www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis - No facebook: gilvander.moreira
[3] Advogada, integrante da Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG – e da Rede Nacional dos Advogados Populares – RENAP -, da Rede de Solidariedade à Comunidade Dandara; e-mail: rosariofi2000@yahoo.com.br
Um abraço afetuoso. Gilvander Moreira, frei Carmelita.
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No Sudeste
foto Kleber Moura Rio e São Paulo: capitais da barbárie contra os moradores de rua, Fonte: MEPR - Movimento Estudantil Popular Revolucionário Rio e São Paulo, CMI Brasil. A frase que diz "socialismo ou barbárie" ganhou já um status de quase lugar-comum. Entretanto, olhando atentamente o que acontece atualmente nas ruas de Rio de Janeiro e São Paulo, as duas cidades mais ricas do País, vemo-nos forçados a refletir sobre a mesma.
As estatísticas sobre população de rua são desencontradas. Propositalmente, claro. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, divulgados em 2008, o Brasil teria uma população de rua estimada em 31.922 pessoas. Só que esses dados são simplesmente irreais: não apenas o governo excluiu do recenseamento menores de 18 anos como não incluiu capitais importantes como São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre.
Não é difícil constatar os limites muito estreitos de tal "pesquisa"?, e nem os interesses em se maquiar tal rutal realidade. Aqueles que nada têm a receber da respeitável "sociedade moderna" são excluídos, inclusive, das estatísticas.
A pesquisa do governo federal apontou o Rio de Janeiro como a cidade com maior quantidade de moradores de rua: 4584 mil pessoas. Em São Paulo o último estudo publicado sobre o tema data de 2003, quando foi apontada uma população de rua de 10.399 pessoas. A "cidade olímpica" e o centro econômico-financeiro do País, aonde se concentram as mais vultosas fortunas e "luxo" em bens de serviço e artigos importados (para a ínfima minoria que pode compra-los, claro), concentram também o setor mais miserável da população, aquele que nem mesmo nas periferias mais distantes e precárias pode morar. A lei geral da acumulação capitalista descoberta por Marx, poderosa chaga lançada na face dos exploradores, que tentam apresentar o seu mundo como o melhor e último dos mundos, impõe-se com toda a sua contundência, como podemos ver.
Chacinas em São Paulo:
Somente nesse ano de 2010, 25 pessoas foram chacinadas na Grande São Paulo. Desse total, boa ou a maior parte eram moradores de rua. Na madrugada de terça-feira última, dia 11 de maio, 6 moradores de rua foram assassinados e um ficou ferido em uma passagem sob a Rodovia Fernão Dias, quase no limite com Guarulhos.
Isso ocorre num momento em que o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (que já teve oportunidade de demonstrar, em várias ocasiões, seu ódio infinito ao povo), radicaliza a política de criminalização dessas pessoas. Como divulga matéria do jornal A Nova Democracia, de maio deste ano, no ano passado o prefeito fechou três albergues na capital, o que significa 1154 vagas a menos. E mais: esse prefeito encarregou os agentes da Guarda Civil Metropolitana, cães de guarda do patrimônio da grande burguesia quatrocentona de São Paulo, de expulsa-los de locais ?impróprios para a permanência saudável das pessoas?. Aqui nem se esconde que se trata de higienização pura e simples...
Rio de Janeiro: a meta é acabar com os pobres, não com a pobreza...
Mas é no Rio de Janeiro, que tem sido verdadeiro laboratório das políticas fascistas para o resto do país, aonde esse discurso de higienização social e limpeza étnica ganha contornos cada vez mais perigosos, assumindo ora formas de violência escancarada e aberta, ora as roupagens mais hipócritas e elaboradas.
As táticas que visam "limpar" a cidade para as Olimpíadas vão desde ocupações militares e remoções nas favelas até incêndios "misteriosos", como o que varreu do mapa o centro de comércio popular da Central do Brasil, causando perda de 4 mil empregos. Quando controlado o incêndio, a Guarda Municipal formou um cordão de isolamento no local visando impedir que trabalhadores recuperassem o que restou de suas mercadorias e muitos desses foram agredidos ao tentar resistir a tamanho e tão descarado absurdo! Fica a pergunta: acidente, ou uma nova modalidade da malfadada operação "Choque de Ordem" da repressão""
Quanto à população de rua, também, é incrível até que ponto se tem chegado.
No princípio do ano jornais cariocas estampavam, em suas páginas, fotos de pedras colocadas sob viadutos para impedir a permanência de mendigos. Sim, é isso mesmo. Não apenas essas pessoas não têm emprego, habitação, são negadas em suas mais básicas necessidades materiais e morais enquanto ser humano como, ainda, têm roubado o quinhão mínimo de espaço que ocupam, restando-lhes agora apenas o relento e a exposição não apenas às chuvas mas todos os tipos de covardia contra eles cometidos. É claro que isso não ficaria sem resposta, e agora já são divulgadas fotos de moradores de rua que, munidos de tábuas, transformam as pedras em camas. É o verdadeiro contra-espaço das massas.
Agora, em conjunto com associações de moradores da zona sul da cidade (área nobre da cidade, aquela que é exibida nas novelas), agentes da Prefeitura de Eduardo Paes (playboyzinho que foi eleito defendendo a união com os governos estadual e federal) e a Rede Globo ?que tem dedicado enorme espaço ao seu jornal regional para o tema- defendem a proibição da distribuição de sopas nas ruas da cidade.
A medida, por si só, já é repugnante. Mas o argumento de um tal sr. Rodrigo Bethlem, mentor do projeto, é impressionante a ponto de não ter adjetivos que o qualifiquem. Disse esse senhor, muito bem nutrido e abrigado, naturalmente, se referindo aos moradores de rua: "Muitos se recusam a seguir para os abrigos porque não querem perder a hora do sopão". Impressionante, não - Milhares de pessoas morariam nas ruas, agora, sujeitas a todo tipo de violências, discriminação, risco permanente de morte e todo tipo de tragédia social não porque não encontram um emprego, ou porque migram de outras miseráveis regiões do país por não ter acesso à terra, mas porque optam por receber o sopão! Que comodidade, não " Estaria disposto esse fascista, também, a trocar seu empreguinho na burocracia estatal e sua casa por um prato de sopa, na rua" É realmente aviltante mas esse tipo de "argumento" é apresentado com a maior naturalidade pelos monopólios da imprensa, em sua loucura higienista e racista.
As operações choque de ordem da prefeitura tiram o emprego de milhares de pessoas, essa prefeitura e a polícia militar do governo estadual ocupam e demolem casas em várias favelas da capital fluminense e, se uma pessoa vê-se jogada à rua, nem mesmo na rua poderá ficar, estando condenada a ficar sob chuva e a morrer de fome. Essa é a face monstruosa desse capitalismo burocrático que temos em nosso país. Isso é o que se chama pretender acabar com os pobres, deixando intacta a pobreza.
Derrotar a Escalada
Não há dúvida que tal tipo de medida mereceria, em outros momentos, repúdio geral, porque é realmente estapafúrdia e qualquer cidadão que nunca tenha participado de alguma mobilização na sua vida é capaz de vê-lo. O puro e simples fato de existirem milhares de pessoas morando em tais condições nas cidades brasileiras, fato inteiramente impossível de ser visto em qualquer país socialista que houve no mundo, fato que entre nós tornou-se inteiramente "natural" (não o é, obviamente) e, além, de tamanha bestialidade ser usada contra os mesmos, retirando o mínimo de dignidade que essas pessoas conseguem criar no seu cotidiano, esse fato é emblemático do momento em que vivemos. Do uso feito do terror pelas classes dominantes para justificar sua estratégia de repressão, da escalada em direção ao Estado policial, em direção ao fascismo.
Devemos entender que somente a mobilização popular, a Rebelião do povo pobre, na cidade e no campo, pode por termo a essa ordem de coisas. Saídas assistencialistas não resolvem o problema da miséria, porque o capitalismo, ao mesmo tempo que produz riqueza, reproduz permanentemente essa miséria. O caminho sim é a Revolução, única via capaz de construir para as gerações futuras uma sociedade na qual notícias como essa sejam não apenas absurdas, como percam mesmo o sentido da sua existência.
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