sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ENTREVISTA com João Paulo Cunha: “As leis de incentivo estão matando a cultura”

Reprodução
Privatização, mercantilização e concentração de recurso são alguns dos problemas do setor
/09/2014
Joana Tavares
Belo Horizonte (MG)
A cultura é o tema da terceira entrevista da série do Brasil de Fato MG sobre grandes temas do estado. “Não se alcança cidadania plena sem cultura. No entanto, a área é muitas vezes vista como o oposto de sua vocação primordial, como um setor que ameniza conflitos e facilita as relações sociais, distrai”, avalia o jornalista João Paulo Cunha, que atua com jornalismo cultural há 15 anos.
Brasil de Fato - Qual balanço você faz da gestão dos últimos anos na área da cultura?
João Paulo Cunha - A cultura nunca foi considerada prioridade pelo estado. As últimas gestões foram marcadas por uma lógica economicista, pouco criativa e concentradora. Os recursos orçamentários  diretos foram ínfimos e a maior parte da sustentação do setor foi empurrada para a iniciativa privada. As leis de incentivo estão matando a cultura. Elas criaram, ao longo dos anos, uma casta de atravessadores, verdadeiros laranjas, que dominam a burocracia e os canais de acesso às grandes empresas. O dinheiro da cultura fica sempre nas mãos dos mesmos, com alta concentração nas grandes cidades. O governo abre mão de cobrar impostos, transfere o poder de investir para o capital e lava as mãos. Já os editais não fomentaram a inovação, não se preocuparam em garantir a emergência de novos criadores, nem contemplaram a crítica e a experimentação. Além disso, a rica diversidade cultural de Minas ficou sufocada pela concentração das ações em BH, quase sempre vinculadas à indústria cultural e à lógica do espetáculo. Descentralizar a cultura não pode ser somente levar produções ao interior, mas investir para que ela possa ser preservada, criada, multiplicada a partir das bases locais.
Não se costuma ver a cultura como área estratégica para o desenvolvimento do estado. Qual a ligação da cultura com a cidadania? 
Cultura e cidadania não podem ser concebidas separadamente. A noção contemporânea de cidadania implica ampliação de direitos e autonomia. Na cultura, essas ações podem ser percebidas com a valorização da cultura popular e das novas linguagens, na descentralização das ações, na participação popular na definição de prioridades, na democratização do acesso, na formação de novos agentes culturais, em um público mais informado e crítico. Não se alcança cidadania plena sem cultura. No entanto, a área é muitas vezes vista como o oposto de sua vocação primordial, como um setor que ameniza conflitos e facilita as relações sociais, distrai. Não é por acaso que quando a população ocupa praças, ruas, terrenos e prédios públicos desativados com ações culturais, o governo fica perplexo e acuado. A área cultural tem mostrado que não aceita barreiras, o que a coloca na vanguarda da luta contra o esforço eugênico de tirar o povo das ruas. Para efetivar a dimensão política da cultura é preciso inverter a lógica da passividade instalada pelo modelo da sociedade do espetáculo, que massifica e aliena.  
O que poderia avançar numa visão mais abrangente da política cultural?
Programas como pontos de cultura, editais para projetos de baixo orçamento, valorização da cultura popular e incentivo à utilização de novas linguagens são algumas propostas que precisam fazer parte do debate, que vão muito além dos eventos e instituições. Além disso, é preciso pensar na formação dos artistas, por meio de programas de qualificação, garantir espaços para finalização de obras (estúdios, laboratórios e salas de ensaio) e ampliar a circulação das produções por meio de políticas de exibição. Criar uma rede de cooperação entre museus, conservatórios e bibliotecas públicas. Outra ação fundamental é a valorização dos corpos artísticos do estado - orquestra, coral, corpo de baile - hoje vivendo em situação de penúria e insegurança legal. Sem esquecer do investimento na política pública de radiodifusão, com participação social e gestão a partir do interesse público. A TV Minas e a Rádio Inconfidência precisam ser parceiras, com independência para produzir e divulgar cultura de qualidade, sem que fiquem reféns de interesses políticos ou de programação chapa-branca. 
Percebe-se uma lógica de mercantilização de espaços culturais, como o circuito da Praça da Liberdade, cujos equipamentos são todos batizados com nomes de empresas. O que isso significa para a cultura?
O Circuito Cultural da Praça da Liberdade deveria ser batizado como Circuito Empresarial da Praça da Liberdade. O que se vê ali é a privatização selvagem do espaço público. O Estado, além de entregar os prédios, entrega o nome, a linha de ação, a política cultural e uma área de grande significação simbólica para Minas Gerais. Além de concentrar várias instituições num espaço que já é servido de museus, cinemas e teatros, tudo é feito a partir do interesse dos patrocinadores. O circuito, além disso, tem uma visão passiva de cultura, sem participação do poder público na definição e acompanhamento dos projetos e com modelos de exposição que fazem do público um mero receptor de “cultura” pronta, vendendo uma visão ideológica de mineiridade

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/29899